A vida que ninguém vê

Adotamos o nome de Maria, para proteger a trabalhadora que conversou conosco sobre a sua realidade

 

Quando a maioria da população ainda está dormindo, Maria já está acordada para mais um dia de trabalho na Universidade Federal da Paraíba. Sua jornada começa às 4h30 da manhã. Ela mora em uma das cidades da região metropolitana de João Pessoa e tem de acordar cedo para chegar no horário no seu trabalho. Maria pega o ônibus às 5h15, às seis da manhã deve “bater o ponto” e começar mais um dia de serviço.

Quem é Maria?
Nascida no interior da Paraíba, numa família simples, mas tradicional nos costumes, Maria logo se mudou para a cidade da região metropolitana de João Pessoa e até hoje vive nela. “Minha família ainda é do interior, temos parentes lá. Quando tem um feriado a gente vai pra lá, visita o pessoal”, conta com afetividade.
Mais velha dos três filhos, ela teve uma infância de lutas, como vem sendo a sua vida até hoje. “Eu comecei a trabalhar com 11 anos de idade. Meu trabalho era cuidar de uma menina. Eu fazia isso para ajudar em casa, porque eu via que as coisas não eram fáceis e sempre quis ajudar minha família”. É importante ressaltar, Maria é uma mulher negra e as oportunidades para ela no mundo do trabalho é perpassada pela história do seu povo, escravizado por 300 anos neste país.

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Perguntamos se essa primeira experiência de Maria com o mundo do trabalho, ainda enquanto criança, tinha sido promovida pelos pais. Ela diz que não. Relata que a decisão foi dela. Fala ainda que nunca faltou comida dentro de casa, mas que não era uma vida farta, com acesso a bens e produtos.
“As vezes minha mãe ia ao mercado e perguntava o que eu tava precisando. Eu sempre falava que não precisava comprar nada para mim, que estava tudo bem. Já tinha meus dois irmãos menores para dar as coisas, apenas meu pai trabalhando, eu não queria dar ainda mais despesa a eles.”
Seu pai é pedreiro, ainda hoje atuante na construção civil. Ele nos conta que o dia que ela nasceu foi marcante, diz ainda que ela é e sempre foi uma menina iluminada, guerreira e pé no chão. Perguntado sobre o que mais se orgulha da sua menina, responde: como ela luta pra conseguir as conquistas dela. Agradeço muito a Deus por mim ter me dado sabedoria pra ter criado tao bem não só ela mas meus filhos, diz.
Sua mãe é dona de casa. Esse é um retrato do interior paraibano da década de 1990, período em que Maria nasceu. Nesta sociedade, era comum o homem trabalhar “fora” enquanto a mulher cuidava da casa, das crianças. Uma sociedade patriarcal.

Respondona e danada. É assim que a genitora descreve Maria na infância. E continua… sempre foi trabalhadeira e ninguém segurava essa menina (kkkk), ela veio de uma família trabalhadora e eu acho que isso fez ela mais forte. Sempre me ajudou em casa, mas eu nunca deixei que ela abandonasse os estudos.
Sobre a relação entre mãe e filha nos conta ainda que a vida delas é de correria e só se veem a noite quando Maria vai dar a benção pra dormir. Quando tem tempo sim, conversamos, mas coisas do dia dia, ela nunca foi de se abrir muito comigo não, revela.
O trabalho como cuidadora nunca impediu que ela estudasse. “Meu pai e minha mãe faziam questão de que eu estudasse, queriam me dar o que não tiveram. Eles sempre me incentivaram a estudar, a concluir o Ensino Médio, me formar”.

O pai fala:
“a força de trabalhar veio de ter uma condição de vida melhor, do jeitinho dela. Uma condição que no tempo da infância dela era muito difícil e eu não consegui dar. Eu jamais queria que minha filha trabalhasse cedo, mas eu respeitei a vontade dela e que hoje não me arrependo. Minha filha se tornou uma mulher muito guerreira, eu tenho orgulho da pessoa que ela é.”
Seu pai até hoje não estudou, mas a mãe concluiu o Ensino Médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos, EJA. Maria nos conta que a sua mãe estudava à noite, relata as dificuldades enfrentadas e a vitória que foi concluir “os estudos” mesmo depois dos 50 anos. Nos diz com orgulho, estampado nos olhos vivos, onde pulsa a existência de uma guerreira.

Trabalho
Desde o primeiro trabalho, aos 11 anos, Maria não parou mais. Já são mais de 20 anos trabalhando. Após sair da função de cuidadora de criança, ela conseguiu um emprego em um mercadinho. Não tinha carteira assinada, não recebia um salário mínimo, mas era o que tinha. Para quem precisa, o que tem sempre será uma opção.
A adolescência chegou. Com ela a paquera e o namoro. Do namoro, primeiro e único, como a mãe, veio o desejo de casar, constituir família. Mas o que ela ganhava no mercadinho não dava para sonhar com o casamento. Sonhar até dava, mas realizar o sonho é o que não era possível.
Um familiar fez o sonho se tornar realidade.

Mais trabalho
Foi através desta pessoa da sua família que Maria veio parar na UFPB. A necessidade de ganhar mais para poder casar casou com a oportunidade de trabalhar numa prestadora de serviços da universidade. A função era de auxiliar de serviços gerais, para trabalhar na limpeza do Centros do Campus I, aqui em João Pessoa.
“Eu comecei aqui tirando uma licença e aqui estou há mais de 10 anos. Sempre trabalhei neste setor, na mesma função. Quando consegui o trabalho aqui foi uma alegria para mim, porque era a primeira vez que eu teria minha carteira assinada, ganharia um salário (mínimo), iria poder casar”.
Às vezes o mínimo é o máximo, depende da sua realidade. Maria, que desde a infância trabalhou, iria pela primeira vez exercer uma função recebendo os direitos mínimos de um trabalhador: carteira assinada, férias remuneradas, terço de férias, décimo terceiro, FGTS, recolhimento da contribuição para aposentadoria. O mínimo era muita coisa para ela porque sempre trabalhou por menos, por quase nada.

Na UFPB
Maria passa 12 das 24 horas do dia fora de casa, longe da família. Sai às 5h e chega às 17. De segunda à sexta-feira esta é a sua rotina. No Campus I da UFPB, no bairro Castelo Branco, fez amizades verdadeiras, tira o dinheiro (importantíssimo para a renda familiar) e leva a vida com alegria, apesar da dureza.
“Eu tenho que estar aqui para bater o ponto às seis da manhã. Então eu me acordo às quatro e meia, para deixar as coisas prontas, me organizar, pegar o ônibus e chegar aqui na hora certa. Aí a gente bate o ponto e já vai trabalhar, limpar as salas, os corredores, lavar os banheiros. Das seis às oito é rojão, mas a gente já está acostumada”.

Às 8h os profissionais que trabalham na limpeza têm um tempinho para comer algo, tomar um café. Mas é rápido, 15 minutinhos, porque logo em seguida tem a imensa área externa para varrer, mais salas para limpar, o trabalho não para. Só às 11 horas, período do almoço, é que ela descansa um pouco. Lembre que o seu dia começou às quatro e meia da manhã.
Maria conta que o trabalho está mais difícil de uns tempos para cá. Com os cortes de gastos do governo Bolsonaro (2018-2022) e a decisão do Reitor, professor Valdiney Gouveia, em conter gastos; o trabalho que antes era realizado por 46 pessoas hoje em dia é feito por 32. Uma redução significativa no número de profissionais.
Mais trabalho, mais cobrança, o mesmo salário. É a atual realidade de quem trabalha limpando a UFPB, serviço essencial, sem o qual a universidade pararia.
Embora a universidade esteja dentro do que Karl Marx vai descrever como superestrutura, os trabalhadores de serviços gerais, vinculados a empresas terceirizadas, que lucram com a oferta da mão de obra, fazem parte da infraestrutura.
Cristiano das Neves Bodart, doutor em Sociologia (USP) e professor na Universidade Federal de Alagoas (Ufal), explica melhor como se dá os conceitos marxistas:
“Para Marx, a infraestrutura trata-se das forças de produção, compostas pelo conjunto formado pela matéria-prima, pelos meios de produção e pelos próprios trabalhadores (onde se dá às relações de produção: empregados-empregados, patrões-empregados). Trata-se da base econômica da sociedade, onde se dão, segundo Marx, as relações de trabalho, estas marcadas pela exploração da força de trabalho no interior do processo de acumulação capitalista. A superestrutura é fruto de estratégias dos grupos dominantes para a consolidação e perpetuação de seu domínio. Trata-se da estrutura jurídico-política e a estrutura ideológica (Estado, Religião, Artes, meios de comunicação, etc.).”
É o materialismo histórico dialético marxista dentro da Universidade Federal da Paraíba.

Relação no trabalho
Sobre a relação com os superiores da empresa terceirizada, Maria conta que hoje está melhor, mas que ao longo desses mais de 10 anos já sofreu abuso de autoridade. Isso acontece muito na forma de falar, como é dada uma orientação, diz.
Já a relação com os técnicos, servidores administrativos, vinculados à própria universidade é muito boa, respeitosa, afetuosa até. Maria relata que essas pessoas têm mais respeito e empatia por quem trabalha na limpeza do que os professores.

“Não é todos não, mas tem professor aqui quem nem pra gente olha, não dá um bom dia, não fala. A gente chega vê que é diferente. Mas eu nem ligo, continuo fazendo o meu e não tô nem aí.” Maria relata que já sofreu abuso de autoridade por parte de professor, e também já presenciou um colega de trabalho passar pelo mesmo.
Já os alunos, assim como os servidores técnicos e administrativos, tratam bem, respeitam e, segundo nos informou Maria, sempre foram assim, nunca tiveram problemas com elas.

O trabalho que dá também tira
O mesmo trabalho que possibilitou Maria se casar, complementa a renda familiar, dá melhor qualidade de vida à sua família… este mesmo trabalho tira, e tira muito dela. Tira muito porque subtrai a parte mais importante da vida: o tempo. O tempo ao lado de quem se ama.
No caso de Maria esse “quem” é alguém, a filha, hoje quase uma adolescente. Quando perguntada sobre como foi o desafio da maternidade passando tantas horas fora, longe da família, principalmente da filha, ali nos primeiros meses e anos de idade, ela não aguentou.

E chorou.
Chorou o choro de uma mãe que ama profundamente a filha, mas que lhe foi tirado o acompanhamento do crescimento, dos primeiros passos, das primeiras palavras, do desenvolvimento da criança, já que quando Maria sai para trabalhar a filha ainda estava dormindo e quando ela chega, exausta do dia de trabalho, já é tarde para uma criança que dorme cedo.

“Essa é a minha grande dor com este trabalho. Eu sou grata a Deus por ele, porque é daqui que eu tiro o nosso sustento, mas ele me impediu de viver o crescimento da minha filha. Eu traumatizei, não quero mais ter filhos. Tem gente que tem trauma e não quer mais por conta de problemas no parto, na gestação, mas o meu caso foi esse, o de não poder acompanhar o desenvolvimento dela”, conta.
Maria é casada com o pai da sua filha há mais de 10 anos. Ele trabalha de forma autônoma, sem vínculo empregatício. Ele até propôs a Maria que largasse o emprego para poder ficar com a filha, mas ela, sabendo da realidade, não aceitou.
Para ele, Maria “tem uma jornada que é bem puxada… em questão de horário e trabalho, mas ela se esforça o bastante pra conseguir dar conta de tanta coisa. Consigo perceber o quanto ela se sacrifica pra ser tudo isso… Batalhadora demais, mulher guerreira”. Tudo isso faz o companheiro ter uma grande admiração por ela, reconhecer suas lutas e vitórias.
É do dinheiro deste trabalho que ela paga a escola privada da filha. Uma coisa que ela faz questão é essa de pagar educação privada, dar o melhor para a menina. Para Maria, as instituições privadas de ensino são melhores e enquanto ela trabalhar, sua filha estudará nelas. A menina já tem um sonho: quer ser policial quando crescer.
Guerreira. É assim que a adolescente vê a entrega e o sacrifício da mãe. Sair juntas é o que mais alegra a menina. Já quando perguntada o que diria para a sua mãe, olhando no seus olhos, não titubeia: que ela é a melhor mãe do mundo.

Foi apenas um sonho
Por falar em sonho, Maria fala sobre os dela.
Perguntamos se ela, trabalhando há tanto tempo na universidade, não tinha vontade de fazer algum curso, se teve sonhos de seguir carreira.
“Primeiro eu queria ser professora. Quando eu era menina, brincava muito de boneca com minhas amigas, por isso queria ser professora. Mas daí eu fui crescendo, vendo a desvalorização dessa profissão, fui mudando. Foi quando eu conheci o trabalho de uma fisioterapeuta e me encantei pela profissão. Pesquisei sobre como era isso, mas nunca passou de um sonho.”
Sobre o porquê foi apenas um sonho ela nos diz que o trabalho influenciou, pois chegava cansada, também a nota para entrar no curso e Maria não se sentir “entendida”, preparada, para concorrer com quem tinha mais tempo e melhores condições de estudo do que ela.
O sonho não se tornou realidade.
Segundo nossa entrevistada, ele está adormecido, não a incomoda mais e parece que continuará lá. Não é algo que incomode Maria. Ela, que viu vários dos seus colegas de escola ingressarem na universidade onde trabalha, mantendo limpa para acolhê-los, não se afeta tanto por ter ficado lá como funcionária e nunca ter pisado os pés na UFPB como aluna.
Isso não deixa de ser irônico, de certa forma contraditório. Como uma pessoa que doa metade da sua vida, lembre-se que Maria dedica 12 horas do seu dia à UFPB, não pode estudar na mesma universidade cuidada por ela para receber os alunos.
É como se a realidade olhasse para ela e falasse assim: você pode ficar aqui, mas apenas como trabalhadora, não como estudante. E assim se passaram 10 anos. Maria não tem culpa. Como uma mãe, que sai de casa ás 5 horas da manhã e acorda às 4 pode ter culpa por não “estudar o suficiente para passar no Enem”?
Maria está sobrevivendo, lutando com todas as forças para dar o melhor que pode aos seus. Ninguém pode dizer que ela não se esforça, que é acomodada. Nem ela mesma.
Uma pessoa que trabalha desde os 11 anos de idade, que foi privada de muitas coisas na vida, que entrega metade do seu dia para levar comida para dentro de casa e concilia maternidade, vida de esposa e profissão não é nem um pouco acomodada.
É, isso sim, uma mulher de muita força. Um exemplo de resistência.

Por: Jairo Alves e Ramon Araújo

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